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quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

As palavras

"O prestigiadíssimo ganhador do Nobel de Literatura, José Saramago, disse, numa entrevista ao O Globo, que o uso do Twitter, o microblog que limita as mensagens ao número máximo de 140 caracteres nos fará involuir ao nível da comunicação por grunhidos."   Fonte - recantodaspalavras
AS PALAVRAS  -  José Saramago
"As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpa. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes. Algumas palavras sugam-nos, não nos largam: são como carraças[1]: vêm nos livros, nos jornais, nos slogans publicitários, nas legendas dos filmes, nas cartas e nos cartazes. As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas[2] ou azedas. O mundo gira sobre palavras lubrificadas com óleo de paciência. Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas. Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem. Há muitas palavras.

E há os discursos, que são palavras encostadas umas às outras, em equilíbrio instável graças a uma precária sintaxe, até o prego final do Disse ou Tenho dito. Com discursos se comemora, se inaugura, se abrem e fecham sessões, se lançam cortinas de fumo ou se dispõem bambinelas[3] de veludo. São brindes, orações, palestras e conferências. Pelos discursos se transmitem louvores, agradecimentos, programas e fantasias. E depois as palavras dos discursos aparecem deitadas em papéis, são pintadas de tinta de impressão – e por essa via entram na imortalidade do Verbo. Ao lado de Sócrates, o presidente da junta afixa o discurso que abriu a torneira do marco fontanário[4]. E as palavras escorrem tão fluidas como o «precioso líquido». Escorrem interminavelmente, alagam o chão, sobem aos joelhos, chegam à cintura, aos ombros, ao pescoço. É o dilúvio universal, um coro desafinado que jorra de milhões de bocas. A terra segue o seu caminho envolta num clamor de loucos, aos gritos, aos uivos, envolta também num murmúrio manso, represo e conciliador. Há de tudo no orfeão[5]: tenores e tenorinos, baixos cantantes, sopranos de dó de peito fácil, barítonos enchumaçados, contraltos de voz-surpresa. Nos intervalos, ouve-se o ponto. E tudo isso atordoa as estrelas e perturba as comunicações, como as tempestades solares.

Porque as palavras deixaram de comunicar. Cada palavra é dita para que se não oiça outra palavra. A palavra, mesmo quando não afirma, afirma-se. A palavra é erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra não mostra. A palavra disfarça.

Daí que seja urgente mondar[6] as palavras para que a sementeira se mude em seara[7]. Daí que as palavras sejam instrumento de morte – ou de salvação. Daí que a palavra só valha o que vale o silêncio do ato.

Há, também, o silêncio. O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e o joio. Mas só o trigo dá pão."   
[1] carrapatos, ; [2] referente ao mel; [3] cortinas de enfeite; [4] chafariz; [5] conjunto de cantores, coro; [6] podar, cortar; [7] lavoura
Fonte - umprofessorle


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