AS PALAVRAS - José Saramago
E há os discursos, que são palavras encostadas umas às outras, em equilíbrio instável graças a uma precária sintaxe, até o prego final do Disse ou Tenho dito. Com discursos se comemora, se inaugura, se abrem e fecham sessões, se lançam cortinas de fumo ou se dispõem bambinelas[3] de veludo. São brindes, orações, palestras e conferências. Pelos discursos se transmitem louvores, agradecimentos, programas e fantasias. E depois as palavras dos discursos aparecem deitadas em papéis, são pintadas de tinta de impressão – e por essa via entram na imortalidade do Verbo. Ao lado de Sócrates, o presidente da junta afixa o discurso que abriu a torneira do marco fontanário[4]. E as palavras escorrem tão fluidas como o «precioso líquido». Escorrem interminavelmente, alagam o chão, sobem aos joelhos, chegam à cintura, aos ombros, ao pescoço. É o dilúvio universal, um coro desafinado que jorra de milhões de bocas. A terra segue o seu caminho envolta num clamor de loucos, aos gritos, aos uivos, envolta também num murmúrio manso, represo e conciliador. Há de tudo no orfeão[5]: tenores e tenorinos, baixos cantantes, sopranos de dó de peito fácil, barítonos enchumaçados, contraltos de voz-surpresa. Nos intervalos, ouve-se o ponto. E tudo isso atordoa as estrelas e perturba as comunicações, como as tempestades solares.
Porque
as palavras deixaram de comunicar. Cada palavra é dita para que se não oiça
outra palavra. A palavra, mesmo quando não afirma, afirma-se. A palavra é erva
fresca e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra não mostra. A palavra
disfarça.
Daí
que seja urgente mondar[6] as palavras para que a sementeira se mude em
seara[7]. Daí que as palavras sejam instrumento de morte – ou de salvação. Daí
que a palavra só valha o que vale o silêncio do ato.
Há,
também, o silêncio. O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio
escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a
terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem
sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e
o joio. Mas só o trigo dá pão."
[1] carrapatos, ; [2] referente ao mel; [3] cortinas de enfeite; [4] chafariz; [5] conjunto de cantores, coro; [6] podar, cortar; [7] lavoura
Fonte - umprofessorle